Traíras - História e sonho
Publicado em 21 Outubro 2007
Sinvaline Pinheiro é poetisa nata de Uruaçu
Dentre os muitos povoados transformados em ruínas com a decadência do ouro, está Traíras, situada a 10 km da cidade de Niquelândia, no Norte de Goiás. Também chamada Tupiraçaba, foi a região mais povoada dessa época, inclusive capital do Brasil.
Porém Traíras é um nome esquecido que ainda vive na memória de alguns goianos e de poucos habitantes que insistem em ficar sob as ruínas dos velhos casarões.
O português Manoel Tomar fundou o arraial onde encontrou ouro em abundância no Rio Traíras, daí a origem do nome, que depois passou a se chamar Tupiraçaba, nome que nem mesmo alguns moradores têm conhecimento. No ano de 1735 este povoado foi o centro da mineração goiana, chegando mesmo a hospedar D. Pedro II, que despachou na cidade por 24 horas. Entre 1735 e 1800 circulavam por lá quinze mil garimpeiros. Os moradores falam com orgulho desse tempo, e há quem se arrisque em dizer que ainda há ouro enterrado, pois acham impossível ter acabado todas as reservas da região. Um morador mais antigo, o Sr. Chico, me contou:
- Aqui quando chove muito a gente acha migaias de ouro que vem nas enchentes...
No justo momento em que falava isso ia chegando seu filho com um saco nas costas, estava garimpando. Ele acredita existir ouro enterrado porque muitos têm visões, e assim vai falando. "Oia, só pro cê vê: quando Dom Pedro veio aqui, uma senhora ricaça mandou fazer um cacho de banana todo em ouro maciço e deu pra ele... Tinha um fazendeiro que tinha uma carabina toda de ouro, é certo que eles enterraram muito ouro por aqui, o problema é que a gente não tem como cavucá".
Os olhos do Seu Chico brilham quando fala, contrastando com os casarões abandonados, caindo aos pedaços. Bem no meio da praça existem os pedaços de paredes feitas em blocos de pedras enormes, são os restos da única cadeia que existiu em Traíras. Dizem que foi queimada com os presos dentro, no ano de 1910. Segundo depoimentos, os detentos foram juntando bagaços de cana, formando uma montanha que pegou fogo e ninguém conseguiu apagar. No fundo da casa em frente tem um túnel que sai da cadeia, onde morreram muitos homens, na tentativa de fuga. A forca que é motivo de muitos causos, foi destruída aos poucos. Seu Chico guarda os ferrolhos que trancavam essa cadeia pública, e hoje no local existem alguns vestígios dela e uma quadra de esportes.
Traíras guarda a lembrança de momentos dourados. A casa onde Dom Pedro se hospedou já caiu a metade, o restante pende para o fim. Nela mora Dona Nica tentando protegê-la na luta contra o tempo. A velha casa de fundição (onde era fundido o ouro) tem as marcas do trabalho escravo nas paredes que resistem aos anos. O Cartório Civil é hoje residência, onde o morador tenta conservar intactas as paredes, o telhado, porque espera receber uma recompensa por isto. As mangueiras no quintal têm um porte frondoso que abriga histórias de 270 anos de existência. Das grandes construções de pedras que foram depredadas na busca de ouro enterrado, ainda resistem algumas paredes e os velhos casarões, onde algumas famílias habitam, escorando as paredes, o telhado, porque esperam receber alguma indenização do governo por conservarem esses monumentos.
Da antiga igreja construída pelos escravos só resta uma parede que nem o tempo e os caçadores de tesouros enterrados conseguiram derrubar: é uma construção com paredes de mais de meio metro de espessura que resiste em meio ao matagal e à curiosidade de muitos.
Seu Chico diz ter encontrado no solo desta igreja uma máscara de ouro e a vendeu para um senhor de fora. Indago sobre essa máscara e ele dá os detalhes: "Era uma máscara do tamanho de uma cabeça, toda em ouro, achei ela enterrada, mas chegou um estrangeiro aqui e ficou querendo comprá ela, vendi baratim, ele me deu um pouco do dinheiro e o resto até hoje".
O cemitério que antes era a primeira igreja de Traíras, a igreja do Senhor Bom Jesus, é um local abandonado onde ainda se lê em algumas das lápides datas como 1830, 1920, e outras. Porém não existe nenhum nome do capitão Sarzedas, que segundo consta nos livros de História de Goiás, foi enterrado neste cemitério. Os moradores dizem que ainda encontram ossadas humanas por todo o povoado. Sempre que alguém cava em algum lugar, é possível se encontrar uma. Seu Chico diz que há uns dias atrás foi fazer um buraco no quintal e encontrou pedaços de esqueleto humano, enterrando-os novamente.
Também conta que sua amiga sonhou que tinha ouro enterrado na antiga igreja do Rosário e, por isso, foram lá cavar. À medida que foram cavando foram se descobrindo quadrados de aroeira com números em seqüência, ele desenterrou o n.º 17, tal qual não foi sua surpresa ao ver que o tesouro enterrado consistia em ossadas humanas.
Da Igreja do Rosário só existem algumas paredes de pedra. Contam que os móveis, baús, santos, sino, foram levados para a cidade de Uruaçu. Dizem que havia até um baú com coroas de ouro e pedras preciosas, 4 castiçais de ouro, imagem de Nossa Senhora da Conceição. Esse caixote possuía 3 travas de ferro, uma chave enorme, era necessário a força de 3 homens para abri-lo. Um senhor de 80 anos que cuidava da igreja passou mal logo após os bens serem retirados e morreu.
Essa igreja foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por parecer de Carlos Drummond de Andrade, que era funcionário do órgão. Inscrição 426 de 19 de janeiro de 1955, processo 0510 T-54, Livro de Belas Artes. Foi depredada em 1966 e hoje dentro dela existe um chiqueiro de porcos. Nos dados do IPHAN consta o seguinte:
Descrição: Edifício de arquitetura religiosa, localizado no centro do antigo e próspero arraial de Traíras, no município de Niquelândia, antigo São José do Tocantins. Construção do século XVII, do período do ciclo do ouro em Goiás, esta igreja possuía, à época de seu tombamento, obras de arte em seu interior tais como: altares laterais com colunas torsas, arco cruzeiro pintado em têmpera, campas de madeira numeradas no piso, além de uma coleção de grande valor escultórico de imagens de madeira, móveis e castiçais em chumbo. Em 1955, sofreu obras de restauro pelo então DEPHAN. A igreja possuía fachada simples, com frontão e óculo central. As portas, janelas, ombreiras e vergas retas eram em madeira. O telhado possuía beiral aparente no interior da igreja. A planta também era simples, de nave única, com puxado lateral para a sacristia. O arco do cruzeiro era decorado com motivos em interpretação barroca. Os altares laterais em talha, com colunas torsas e baldaquino, se assemelhavam aos retábulos de Minas, na época de D. João V. Em seu conjunto de imagens sacras, temos: o Cristo crucificado do altar (crucifixo de marfim) e uma outra imagem de tamanho menor: Nossa Senhora da Conceição; Nossa Senhora do Rosário; Santa Efigênia (02 imagens); Santo Antônio (hoje restaurada e guardada no Museu das Bandeiras, Goiás); São João Nepomuceno; São Pedro; São Benedito e uma que possivelmente venha a ser São Domingos. No final dos anos 70, a igreja já estava em ruínas e parte de seus objetos (imagens e sino) foram arrestados pelo Bispo de Uruaçu – Dom José da Silva Oliveira.
E assim são muitas histórias, às vezes fantasiosas como a do ouro que corre nas ruas após as chuvas, as visões e outras. Mas todas guardam um fundo de verdade. No povoado não há escolas, hospitais, nem farmácias; os habitantes que são mais ou menos umas 120 pessoas, vão à Niquelândia a pé ou de carona, quando passa algum carro por lá. O sonho destas pessoas é de que o patrimônio seja restaurado. Eles teimam em morar lá na esperança de que um dia as autoridades reconheçam o valor histórico do lugar e preservem o resto dessa grande riqueza cultural que aos poucos está desaparecendo. Este povoado guarda marcos do início da colonização de Goiás e tem sob suas ruínas histórias que um dia poderão servir para o resgate de nossas raízes.